Fonte: Valor Econômico |
Uma proposta de mudança na regulamentação que norteia os investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação pelas empresas que produzem petróleo no Brasil uniu petroleiras, fornecedores e universidades contra a Agência Nacional do Petróleo (ANP). A razão da discórdia é a revisão da Cláusula de Investimento em Pesquisa e Desenvolvimento, que está em fase de consulta pública e terá audiência pública hoje. Apesar de concordarem com a necessidade de mudanças, indústria e universidades contestam a criação do Comitê Técnico-Científico (Comtec), vinculado à ANP.
Formado por oito membros, sendo cinco da ANP e três representantes das petroleiras, fornecedoras e instituições credenciadas, o comitê passará a direcionar a utilização dos recursos bilionários de P&D, antes gerenciados diretamente pelas empresas. E não é só. Apesar de introduzido nos contratos apenas no ano passado, a ANP quer aplicar a nova destinação nos contratos anteriores.
A fixação de salário-teto do funcionalismo (R$ 29 mil por mês ou R$ 167,40 por hora) para contratação de especialistas é um dos pontos controversos. ANP afirma que a intenção é evitar desequilíbrios no sistema de ensino. Também não foi bem aceita a proposta para que os investimentos obrigatórios em fornecedores sejam destinados exclusivamente a micro, pequenas e médias empresas.
O processo não deveria ser de exclusão, e sim de inclusão. Queremos construir empresas globais. Almejamos a criação de grandes empresas brasileiras que exportem suas soluções, afirma Antônio Guimarães, secretário-executivo do Instituto Brasileiro do Petróleo (IBP).
O superintendente de pesquisa e desenvolvimento tecnológico da ANP, Elias Ramos de Souza, defende a proposta. “Mudamos porque existe uma visão da ANP, do mercado e da sociedade de que esses investimentos não estão sendo satisfatórios”, disse Souza ao Valor. “O objetivo não é criar entraves, e sim direcionar investimentos para o crescimento do Brasil. Estamos fazendo isso porque na experiência de 15 anos de geração desses recursos, os resultados não são bons.”
Incluída nos contratos de concessão a partir de 1998, a Cláusula de Investimento em P&D só foi regulamentada em 2005 e resultou em obrigações de investimento de R$ 9 bilhões pelas empresas, entre 1998 e maio de 2014. Atualmente, 17 concessionárias têm obrigação de investir em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Entre 2006 e 2014, a Petrobras respondeu por mais de 94,6% dos recursos, seguida pela BG , com 3,39%.
A estimativa da ANP é que, entre este ano e 2023, as obrigações de investimento na área cheguem a R$ 30,23 bilhões. Entre 2014 e 2017, são esperados R$ 8,72 bilhões, quase todo o montante investido nos últimos 15 anos. Os valores previstos são conservadores, porque não incluem o campo de Libra, leiloado no ano passado, e nem o excedente da cessão onerosa adquirido pela Petrobras da União.
Desde a 11ª Rodada de Licitações, realizada no ano passado, os contratos de concessão passaram a mencionar o Comtec, mas só agora a definição da atuação do comitê passou a ser detalhada em uma minuta de regulamento técnico. Com tantos pontos controversos, a indústria pede mais tempo e novas consultas públicas para rediscutir as propostas. A ANP já recebeu propostas de 50 interessados na discussão. O IBP, sozinho, enviou 82 sugestões.
O secretário-executivo do IBP afirma que, por intermédio do Comtec, a ANP pretende dar um direcionamento para a aplicação dos recursos, sem considerar os projetos que a cadeia entende serem necessários. “É uma intervenção na relação público-privada entre os operadores e as instituições”, diz Guimarães, do IBP.
A afirmação é contestada pelo superintendente da ANP. “A metade dos recursos a empresa pode investir no projeto de P&D que quiser. A outra metade, que vai para as instituições credenciadas, nós vamos dar um direcionamento. Não vamos dizer para indústria colocar [recursos] no projeto X, Y e Z, mas que precisamos investir mais na indústria ‘subsea’ ou em engenharia básica. É simplesmente para direcionar”, diz Souza.
O IBP enfatiza que, embora dedutíveis do pagamento de participação especial, a natureza desses investimentos é privada. Tanto que não estão sujeitos à Lei de Licitações ou à fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). Agora, há o temor de se repetir o destino do Fundo Setorial do Petróleo e Gás Natural (CT-Petro), antes destinado ao desenvolvimento científico e tecnológico. Segundo levantamento do Instituto de Energia da PUC-Rio, dos R$ 9,59 bilhões arrecadados entre 1999 e 2012, apenas 10% (R$ 906,4 milhões) foram pagos.
Diretor-executivo do Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maurício Guedes se diz preocupado com a minuta de resolução da ANP quando ela menciona, entre as novas diretrizes, o estímulo à descentralização das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação e aplicação equitativa nos Estados. Isso porque, segundo ele, diversas instituições do Rio de Janeiro recebem hoje 37% dos recursos, resultado de parceria com a Petrobras desde o início da exploração da Bacia de Campos.
A ANP garante que pretende preservar os investimentos em universidades. “O IBP está propondo uma flexibilização para que esse recurso seja aplicado em universidades ou empresas fornecedoras. Isso não está certo. É tirar recursos da universidade para aplicar em empresas que não precisam de dinheiro para fazer P&D, porque já investem mais do que foi gerado pela cláusula”, diz Souza.
O superintendente acha importante que essa indústria seja atraída para o Brasil, mas para parceria em projetos que ajudem a desenvolver fornecedores locais. “Não podemos entregar dinheiro para elas”, diz, defendendo também o direcionamento dos investimentos pelo Comtec, inclusive dos recursos gerados pelos campos licitados anteriormente.
Esse recurso é uma contraprestação de serviços que a empresa assume no momento em que ela assina um contrato de concessão. O contrato, seja de concessão, partilha ou de cessão onerosa, estabelece obrigações para que a empresa explore as riquezas da União. É preciso regular como esse dinheiro público, aplicado diretamente pela empresa numa terceira parte, vai ser realizado, afirma Souza.
A UFRJ foi a instituição que mais recebeu recursos destinados a universidades, num total de R$ 479 milhões até junho, que representam 12,43%. A segunda maior destinatária foi a Universidade de Pernambuco (3,93%), enquanto as paulistas USP e Unicamp receberam juntas 5,29%, só para mencionar algumas. Guedes, do Parque Tecnológico, critica a intenção de descentralizar os recursos. “P&D se faz com centros de excelência”, diz.
A cláusula de investimento em vigor, regulamentada por meio da resolução 33 da ANP, de 2005, estabelece critérios para a realização das despesas com pesquisa e inovação. Pelo menos 50% do valor pode ser aplicado livremente pelas empresas, e os outros 50% devem ser aplicados em projetos ou programas em universidades e institutos de pesquisa e desenvolvimento credenciadas.
Todos vemos com bons olhos a atualização do regulamento, mas as mudanças propostas estão na contramão do fomento à pesquisa e inovação. A proposta da ANP não reflete as diretrizes e expectativas contidas na proposta inicial. Como foi colocada a minuta [de resolução], não vai cumprir seu papel de fomentar o P&D no Brasil, afirma Guimarães, do IBP.
Outro ponto de contestação está nas regras de propriedade intelectual, já que a proposta é que as informações sobre tecnologias, produtos, processos e resultados dos projetos financiados se tornem públicos em dois anos.
É pouco estimulante entrar num projeto se a operadora tiver de divulgar dados estratégicos, afirma Telmo Ghiorzi, da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Petróleo. Para a indústria, a ANP não está considerando a importância estratégica do conhecimento e pode desencorajar investimento em projetos com aplicação comercial.